domingo, 2 de junho de 2019

O anjo radioativo

Um anjo radioativo desceu do céu noturno
E todos correram para abraçar suas asas fluorescentes
- Eu trago energia para transformar as coisas.
Todos se fascinaram, finalmente um salvador!
Mal perceberam o sangrar das gengivas que tingia o sorriso.

Bufotenina

Eu vejo uma névoa entre flores de junco
Na beira do rio enegrecido
Barulho de cigarras e de pássaros
Vejo o sol ,arrependido , regredir o seu caminho
E fixar a noite 

Aí tropeço em delírio
Como vitima do veneno de sapo
Minhas orelhas pegam fogo
No calor entre tuas coxas
E minha nuca é escavada por tuas unhas

Mas cá estamos, descalços na lama
Os pássaros que acordaram tornam ao sono
Eu sinto o medo no ventre
Pirilampos enfeitam teu cabelo

As constelações se refletem no orbe dos meus olhos
Te envolvo no abraço desesperado da serpente
Que quebra, que sufoca
Para juntos descendo às águas consumar o casamento da escuridão

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Tanatogonia


 Teodoro brincava com sua massinha de modelar. Era uma tarde chuvosa, muitos raios cortavam o céu. Ele começou brincando com cada cor separada, mas com o tédio as foi misturando até formar uma massa colorida. Se sentia tão sozinho... modelou animais, cadeiras tortas e por fim fez alguns bonequinhos. Com um palito riscou os olhos e a boca, os sentou na cadeirinha e começou aquela conversa sussurrada de criança, falando consigo mesmo e com os objetos.
 A luz caiu, um raio iluminou tudo e seu estrondo entrou pela janela num pulo. A luz volta e ele olha assustado para seus bonecos: estavam vivos. Eram cinco, todos muito parecidos, se levantaram e se esticaram.
- Finalmente terei amigos.
Bateu palmas e foi olhar com mais atenção os recém animados.
- Olá, estamos aqui. O que quer fazer?
- vamos brincar.
 Ele pegou um carrinho e colocou-os em cima, em quanto puxava eles estendiam os braços para cima. Depois os colocou dentro de uma casinha de palitos. Mas seus dedos desajeitados amassavam o corpo dos homúnculos, que gemiam com dor. Ele notou que eles não queriam mais brincar com raiva:
- Vocês pertencem a mim, devem fazer tudo que eu quiser.
- Gostaríamos de dormir, o dia foi longo e estamos cansados.
Não satisfeito com a resposta Teodoro pegou um envolvendo os dedos na barriga e colocou um lápis de cor na sua boca até atravessar.Chorava por sentir que eles descumpriram a obrigação que tinham com ele.
- Você não vai mais falar besteiras.
Para sua surpresa o boneco sangrou e gritou, esperneando de agonia. Todos os outros se revoltaram:
- Para que nos criar para nos machucar? Nos deixe ir embora.
Tocado pelo ciúme que a arrogância lhe incitou, foi até a caixa de ferramentas de seu pai e pegou um martelo. Amassou os pés dos homenzinhos de massa no chão para que não fugissem e os esmagou com uma martelada atrás da outra. A mistura de sangue, resinas coloridas e membros se confundia e ainda gemia angustiada.
- Qual o motivo de ter nos feito? Precisávamos sofrer isso? Por quê?
Outra queda de luz e o vento parecia dar um grande suspiro lá fora. Dois trovões e quando a luz voltou, não havia resto de nada que não fossem as massinhas inertes.

quarta-feira, 1 de maio de 2019

A floresta dos quatro ventos


Como poderia não chorar
Se até o próprio céu derrama chuva?
De todos os lados me vêm histórias antigas
Das estrelas dançando na noite
Nas linhas das palmas da mão...

Não aceito teu café com escarro
Nem a falta do que sonhar.
Acaso não é a manhã mais do que o dia?
O perfume de jabuticabas caídas
E de folhas úmidas.

Então entre as arvores vou me ocultar
Fazendo de mim mesmo luz na penumbra
E das corujas e mariposas, minhas amigas
Expondo o coração ao açoite
Da poesia da imensidão.

Aceitando que tudo sempre foi caro
E eu não tinha como comprar
Isso me impediria?
Minha algazarra ironiza as coisas perdidas,
O prelúdio da batalha que se finda.

sábado, 27 de abril de 2019

Abramelim

 Bem, eu e minha namorada éramos jovens rebeldes. Em algum livro obscuro encontramos um ritual de invocação e tentamos fazer, ao som de rock e com camisetas de bandas. Desenhamos as figuras geométricas, acendemos as velas e o incenso e sacrificamos uma pombinha.
- Será que era preciso matar a pomba? Ela era tão bonitinha...
- Bem, seguimos os passos né.
 Acabada a profanação colocamos um chapéu no meio do desenho e esquecemos disso um pouco. Na cozinha havia uma garrafa de vinho que logo se esvaziou, em meio a beijos e abraços voltamos para o quarto. Tirei a camisa que joguei na cadeira e percebi nela o chapéu flutuante, como se algo invisível estivesse sentado ali. O coração descompassou.
- Amor, olha ali.
Ela deu um grito e fez rosto de surpresa. O ser se mexia um pouco mas nada dizia ou fazia. Com os dias o desespero passou e o mesmo chapéu passeava pela casa, demonstrado não ser perigoso.
- Vamos dar a ele um nome, vai ser Abramelim.
Ela teve a ideia de cobrir ele com pó de arroz, para contornar sua forma invisível. Não funcionou, tudo atravessava , apenas chapéus pareciam ter de alguma forma  interação com ele. Passava o dia vendo televisão na sala, nós comíamos pipoca e víamos desenhos.
- Podemos tentar algo...
Colocamos perucas e bonés sobre a cabeça dele, e estes ficavam firmes.
- Parece que só coisas de usar na cabeça funcionam.
Colocamos então um óculos escuro e um boné em Abramelim. E mesmo com o passar dos anos ele continuava ali, aquele livro impreciso não informava nenhum ritual de banimento e devia ter roubado apenas a invocação de uma fonte segura.
Aquilo que inicialmente nós assustava agora era como um colega.
- Abramelim, essa roupa ficou boa?
Ele acenava com a cabeça em sinal de afirmação ou negação. Olhava pela janela e dava a impressão de um ar pensativo. Quando se tornou nosso amigo e começou a sair conosco para restaurantes as pessoas se assustavam e fugiam, era melhor leva-lo sem peça alguma. Mais tarde descobrimos ter cometido a profanação máxima: algo que foi feito para ser odiado e odiar, conheceu o amor.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Eu acredito em morte antes da vida.

As costas pesaram, o ar estagnou, percebi tudo rodando e girando, em eixos aleatórias. Eu nunca era o centro daquela náusea, daquele nojo. Os tentáculos de um polvo negro subiam minha garganta.
Se pudesse vomitaria minha vida. Lançaria fora de mim essa gosma indigesta da alma e junto com ela todas as lembranças, sonhos e aprendizados. Escovaria os dentes para tirar o sabor ruim de estar vivo, de sentir. Um bom enxaguante finalizaria, deixando tudo asséptico .
Depois olhando no espelho já não seria eu, mas uma entidade mecânica. Altamente funcional por sinal. No vazio do pensamento realiza as tarefas e obrigações, pega ônibus, lê textos maçantes. Nada abala seu sono sem sonhos e sua constância metálica.Pelo fato de não ter alma seria apto e destemido. Realizaria tudo com sucesso e morreria indiferente. Mas na verdade a vida perniciosa atravessou meu estomago e se alojou dentro de meus ossos, apodrecendo. Não me permite viver nem morrer, mas sim uma eterna decomposição.

quarta-feira, 27 de março de 2019

Salto no abismo

Se eu me sinto só
De certo é que me faltou o abraço primeiro
Pois todos os outros pareciam fora de tempo
Como um pesadelo de criança que se torna real
No adulto que acorda assustado com uma lembrança de meninice.

Quero abrir mão da esperança
Como quem supera o luto:
Um túmulo já sem flores,
Longe dos sonhos e das conquistas,
Que a terra sabiamente soube encobrir.

Se eu me sinto só
É por que minha pureza se revelou estéril
Como o brilho dourado de um ácido engavetado
Como uma manhã de domingo na qual se brinca na areia
E depois se luta para limpar roupas e sapatos.

Quero abrir mão de todos os dias lindos
Os verões de sol e os risos ingênuos
Sim, trocaria tudo pelo nada
Pois somente nele convém minha alma
Vazio sob vazio,na ausência de tudo.